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quarta-feira, 12 de outubro de 2011

Opinião: O Mito Jobs

Por Marcelo Zero*

A morte de Steve Jobs vem produzindo um festival de sandices abobadas dos adoradores de produtos tecnológicos, com intensa ressonância em nossa mídia. De todos os lados, surgem verdadeiras odes ao grande “gênio criativo” que “mudou o mundo” e “transformou nossas vidas”. Nessa onda de idolatria histérica, aparecem até os que o comparam a John Lennon, Charlie Chaplin ou, pasmem (!), a Einstein.

Bom, os que entendem um pouco do mundo tecnológico sabem muito bem que Steve Jobs nunca foi um gênio criador de novas tecnologias. No início da Apple, o verdadeiro gênio criador foi Steve Wozniack, sócio de Jobs. Wozniack tinha uma capacidade fantástica de desenhar circuitos integrados, reduzindo drasticamente o número de chips e transistores necessários para se realizar as tarefas requeridas.
Foi com base essencialmente nessa capacidade de Wozniack, que os primeiros computadores da Apple (Apple I e Apple II) fizeram sucesso. Eles eram mais completos e compactos que os de muitos rivais. Eram computadores realmente pessoais que tinham alguma utilidade para o usuário comum, ao contrário dos precursores do início da década de 1970, que serviam apenas para programadores e geeks.

A outra revolução da Apple ocorreu quando a empresa lançou, já primeira metade da década de 1980, os primeiros computadores pessoais com Graphical User Interface (GUI), o Lisa e o famoso Macintosh. A interface gráfica, à qual estamos hoje acostumados, permite que o usuário possa navegar pelo sistema operacional e pelos programas clicando ícones, o que torna a experiência do uso do computador muito mais fácil e agradável. É a tecnologia onipresente em todos os aparelhos atuais, dos computadores aos smartphones, passando pelos tablets.

Entretanto, a GUI não foi inventada por Steve Jobs. Sequer foi inventada pela Apple. Na realidade, a GUI, tal como a conhecemos hoje, foi desenvolvida por uma equipe de engenheiros da Xerox, a partir das primeiras experiências de Douglas Engelbart, que introduziram essa tecnologia revolucionária no computador Xerox Alto, já em 1973. Entretanto, a direção da Xerox não viu grande utilidade imediata nessa tecnologia, não sabia bem o que fazer com ela. Quando a Apple começou a crescer, a Xerox quis investir nela. Jobs, esperto, exigiu que, em troca da participação, os engenheiros da Apple tivessem acesso à tecnologia do Xerox Alto e de outros computadores com GUI da Xerox. Assim, a revolucionária tecnologia da GUI foi vendida, no início dos 80, por US$ 1 milhão pela Xerox à Apple. Até hoje, os engenheiros da Xerox reclamam desse “grande negócio”.

Se a Xerox tivesse percebido a revolução que seus engenheiros tinham produzido, já no início da década de 1970, e tivesse nela investido, ela teria se transformado na grande empresa mundial da computação pessoal. Lembre-se que a Microsoft introduziu sua primeira e primitiva versão do seu sistema operacional com GUI, o Windows 1.0, só ao final de 1985.

Após um crescimento vertiginoso, a Apple foi vencida pelos grandes rivais, a Microsoft/IBM, que deram vida ao PC. Isso porque a Apple sempre foi uma empresa de hardware e software fechados. A IBM, no entanto, abriu o hardware do PC para que qualquer empresa pudesse fabricá-lo. Isso tornou os PCs bem mais baratos que os computadores da Apple.

Desse modo, a fabricante dos Macs quase foi à falência, em meados da década de 1990. A volta de Steve Jobs deu novo ânimo à empresa. A recuperação veio, num primeiro momento, com os iMacs, computadores que tinham como seu forte o design inovador e colorido. Mais uma vez, o verdadeiro gênio criativo por trás desse produto não foi Steve Jobs e sim Jonathan Ive, o designer inglês responsável pela identidade visual dos atuais produtos da Apple.

Outro produto que ajudou na recuperação da Apple foi o novo MacOS. Não obstante, esse novo sistema operacional não tinha ou têm nada de revolucionário. Trata-se, na verdade, de uma GUI construída com base numa versão do UNIX, um antigo sistema operacional desenvolvido por Ken Thompson, na década de 1970.
Mas o verdadeiro “salto” recente da Apple veio com o lançamento de outros produtos como o iPod, o iPhone e o iPad. Nenhum deles, contudo, é realmente revolucionário e inovador, e nenhum foi inventado por Steve Jobs. O primeiro tocador de áudio digital foi inventado por Ken Kramer, em 1979, que depois foi contratado como consultor da Apple. Já o primeiro tocador digital de música foi lançado comercialmente em 1996 por uma companhia chamada Audio Highway, que ganhou vários prêmios pelo produto inovador. Ela foi seguida por várias outras companhias que lançaram seus produtos ainda na década de 1990, como a Diamond Multimidia, a Hang Go, a Creative e várias outras.

A Apple só lançou seu primeiro iPod ao final de 2001. Assim, ela apenas entrou em mercado que já existia. Também não se pode dizer que foram Steve Jobs e a Apple que “inventaram” a distribuição de música pela internet, como disseram alguns. Na realidade, a massificação da distribuição de música digital pela internet começou com o Napster, que permitia o intercâmbio de música gratuitamente entre os seus usuários. O Napster, é claro, foi fechado pelas grandes gravadoras. Steve Jobs, sempre atento às tendências do mercado, fez um acordo com elas para vender música pela internet, e lançou o programa iTunes, o qual, combinado com os iPods, a tornou líder, nesse segmento.

A mesma observação vale para iPhone, a versão Apple de pré-existentes smartphones, e para o iPad, a versão Apple dos antigos tablets e slates.
Não obstante, isso não quer dizer que Steve Jobs não tenha seu mérito. Ele foi, de fato, um empresário de visão, que sabia identificar tecnologias interessantes e motivar a sua equipe para aperfeiçoá-las e transformá-las em produtos de qualidade, com excelente design e de grande apelo para os consumidores. Ele também tinha um faro apurado para captar o que os consumidores iriam querer comprar.

Nesse sentido, ele foi um grande provedor daquilo que Herbert Marcuse chamava de “necessidades artificiais”, as necessidades que a sociedade pós-industrial, a sociedade de consumo, cria para manter suas taxas de lucro e escravizar os consumidores. Agregue-se que o fato da Apple ser uma empresa com hardware e software estritamente fechados, a coloca na contramão da tendência à democratização da informação, propiciada pelos softwares livres e o copyleft.

Enfim, classificar Steve Jobs como um grande gênio criativo da moderna tecnologia é um erro crasso. E compará-lo a Chaplin ou a Einstein é manifestação de idolatria obtusa, só comparável à exibida pelos abobados que permanecem dias na fila para serem os primeiros a comprar o último gadget eletrônico da Apple.
Marcelo Zero é economista

As opiniões aqui postadas são de responsabilidade de seus autores

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