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quarta-feira, 4 de maio de 2011

Opinião: Da TV educativa à TV pública

Por Jonas Valente, do Observatório do Direito à Comunicação

Por meio da Portaria nº 70, de 29 de março de 2011, o Ministério das Comunicações colocou em consulta pública uma proposta de ato normativo que estabelece novos critérios para a concessão de outorgas para a prestação de serviços de televisão educativa.

O ato pretende instituir nas educativas um processo seletivo que já é praticado no caso das emissoras comunitárias. O Minicom soltaria um aviso de habilitação em locais com canais disponíveis e receberia as propostas dos interessados em prestar o serviço. Em 60 dias, a proposta deve ser apresentada, acompanhada de uma lista de documentos fixada no anexo da portaria.

O ato reforça a preferência a entes de direito público interno prevista no artigo 34 da Lei 4.117 (o Código Brasileiro de Telecomunicações), o que na prática dá vantagem às universidades.
Embora isso já existisse, tal dispositivo precisa ser cumprido na prática, pois há casos como na cidade de Goiânia em que instituições de ensino foram preteridas por fundações ligadas à igrejas.
O documento define os critérios de avaliação dos candidatos. Dois dos mais importantes são a representatividade da instituição de ensino à qual o proponente tem de estar vinculado e a participação de membros dessa instituição na direção do ente concorrente. Concretamente, a nova regra obriga que os pleiteantes estejam associados a uma universidade - na forma de uma fundação, por exemplo - , exigência que não existe hoje.

As outorgas educativas
O esforço de racionalizar os procedimentos de análise das outorgas sinalizado pela nova gestão do Minicom é louvável. Entidades da sociedade civil já vêm há anos apontando o faroeste das concessões de rádio e TV e destacando a necessidade de garantir transparência, democracia e agilidade ao processamento das autorizações. Mas, neste caso específico, o Minicom peca por não ir fundo na solução necessária ao caso das educativas. Mas antes de maiores considerações, vale recuperar o que são essas autorizações.

O serviço de televisão com fins educativos foi criado no Decreto-Lei
236 de 1967. Ele aparece em um movimento de criação de emissoras que respondiam ao projeto dos militares de utilizar este meio como forma barata e segura de difusão de conteúdos para uma população com baixa instrução e jogada como mão-de-obra em um mercado em rápida industrialização.

O Artigo 13o, que trata da nova licença, veda a publicidade, bem como qualquer tipo de patrocínio, e define o escopo da programação: “a televisão educativa se destinará à divulgação de programas educacionais, mediante a transmissão de aulas, conferências, palestras e debates”. Ou seja, essas emissoras tinham um limite muito claro como canais de transmissão de conteúdos que hoje conhecemos na forma de “telecursos” e outras formas de falas de personalidades ou discussões ancoradas.

A primeira emissora educativa foi a TV Universitária de Pernambuco. Em seguida surgiram as educativas controladas pelos governos estaduais.
Já o governo federal preferiu se reservar o papel de produtor, com a Fundação Centro Brasileiro de Televisão Educativa, que na década de 1970 ganharia a responsabilidade pela gestão da TVE.
Inicialmente, a licença educativa acabou atendendo à tentativa de constituir um meio massivo de qualificação profissional. Mas rapidamente passou a ser a forma pela qual se edificou o frágil “sistema público” (de cunho claramente institucional governamental1) brasileiro. Mas isso não significa que a licença só possa ser obtida por entes de direito público. Muito pelo contrário. E é aí que mora o vício de origem da TV Educativa.

A licença se estrutura a partir de uma finalidade (veicular conteúdo educativo), e não de uma modalidade de radiodifusão. Isso significa que ela pode ser dada a um ente privado, como acontece hoje com diversas fundações vinculadas a igrejas que mantém canais de TV em vários estados do país. Com a Constituição Brasileira de 1988, essa contradição ficou mais evidente, uma vez que o Artigo 223 prevê a complementaridade entre os sistemas público, privado e estatal.

Como esse capítulo nunca foi inteiramente regulamentado (é possível falar em regulamentação parcial com a Lei 11.652, que criou a Empresa Brasil de Comunicação), ficou a contradição de uma licença baseada em uma finalidade e uma modalidade sem uma definição nem tipo de autorização específico. Soma-se a isso o fato da obrigação de conteúdos educativos ter perdido validade na prática. Desde praticamente o nascimento dessas emissoras elas veiculam outros tipos de programas e as sucessivas gestões do Ministério das Comunicações sempre permitiram essa prática.

O problema é outro
Voltando à consulta do Minicom, a ponderação central desse artigo é:
que sentido faz racionalizar o procedimento de uma licença inadequada tanto do ponto de vista da concepção de uma arquitetura adequada do marco regulatório quanto da sua implementação prática?

Em vez disso, seria mais importante que o Minicom agilizasse a apresentação da proposta de reforma do marco regulatório e que, nela, mudasse as licenças de modo que elas reflitam as novas modalidades do sistema de mídia, público, privado e estatal.

A autorização para o sistema privado poderia ser obtida por empresas, mas também por entes privados sem fins lucrativos, como fundações, associações, sindicatos etc.... a exemplo do que acontece na Argentina. Nos dois casos, deveriam ser respeitadas as regras de limitação de propriedade (em especial que garantam o controle por brasileiros e a proibição de concentração em oligopólios) e de obrigações de conteúdo, a partir da noção de que esses entes prestam um serviço público sob concessão do Estado.

A licença para o sistema estatal seria dada para emissoras vinculadas a determinas instituições dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, nas três esferas da Federação. Entrariam aí a NBR, a TV do Governo Federal, as TVs Câmara, Senado e Justiça, bem como os veículos de assembleias legislativas, câmaras de vereadores, prefeituras e afins.

E a permissão para o Sistema Público seria concedida a entes estatais especificamente criados para esse fim que tivessem em sua estrutura instâncias controladas pela sociedade por meio de suas representações.

Não queremos, com isso, desvalorizar os conteúdos educativos. Eles continuam importantes. E devem fazer parte das grades das emissoras, sejam elas públicas, estatais ou privadas. Mas concluímos reiterando que no cenário atual não contribui para uma arquitetura adequada do sistema de mídia brasileiro a previsão de emissoras voltadas exclusivamente a esse gênero informativo.

Para entender a concepção de público e estatal assumida neste artigo favor ver a dissertação “TV Pública no Brasil: o surgimento da TV Brasil e sua inserção no modo de regulação setorial da televisão brasileira ”, de nossa autoria.


*Integrante da Coordenação Executiva do Intervozes - Coletivo Brasil de Comunicação Social,

secretário-geral do Sindicato dos Jornalistas do Distrito Federal e

pesquisador do Laboratório de Políticas e Comunicação da Unb (Lapcom).


As opiniões aqui expressas são de responsabilidade de seus autores

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